O sono será seu santo remédio. Basta uma noite de privação de sono para surgirem problemas no delicado aparato de drenagem de dejetos tóxicos cerebrais.

Um atleta amador de mountain bike, conhecido pela sua imprudência, contabiliza três violentas quedas no último ano. Em todos esses tombos sua cabeça recebeu um forte golpe, seja contra o solo ou alguma árvore. Ele procura o neurologista dias após o último acidente; diz estar irritado, ansioso e com dificuldades de concentração. Também dorme mal, mas tem o hábito de relutar em adormecer, considera o sono um desperdício de tempo. Veio armado ao consultório com uma tomografia de crânio, felizmente normal.

Entretanto, há com o que se preocupar. Traumatismos cranianos repetitivos podem causar demência futuramente. Pequenos ferimentos intracerebrais liberam grumos proteicos dentro do crânio, causando inflamação e destruição de células cerebrais que gera mais indesejáveis concentrações e novas destruições. Os sintomas do ciclista são alarmes.

Noites mal dormidas também causam a mesma concentração de proteínas. Dessa forma, nosso intrépido esportista possui dois fatores de risco para demência: seu histórico de acidentes e seu comportamento inadequado durante o sono.

A descoberta científica que acendeu a luz sobre a relação do sono e os emaranhados proteicos é relativamente recente, datada em 2012. Surgiu quando o sistema glinfágico foi encontrado em cérebros de ratos e, mais tarde, inferiu-se que existia em humanos. Esse sistema é uma rede de drenagem intracerebral que remove restos metabólicos do cérebro e repõe nutrientes. Os condutos operam ativamente durante o sono e muito pouco durante a vigília. Sucessivas noites mal dormidas reduzirão o tempo de funcionamento dessas vias, e assim haverá acúmulos de dejetos tóxicos que poderão ser um dos gatilhos para a degeneração cerebral causadora de demência.

Mas basta uma noite de privação de sono para surgirem problemas nesse delicado aparato de drenagem. Foi o que provaram o neurocirurgião Per Kristian Eide, da Universidade de Oslo, e sua equipe. Os pesquisadores injetaram uma molécula marcadora no liquor —líquido que banha o cérebro— de voluntários. Dois grupos distintos foram formados em seguida. Membros de um deles não dormiram durante a noite que se seguiu, enquanto os outros participantes tiveram repouso adequado.

Na manhã seguinte, todos os participantes foram submetidos a exame de ressonância magnética de crânio, com uma técnica especial capaz de detectar a molécula traçadora. O que se viu foi a persistência do artefato nos cérebros dos quem não haviam dormido. Surpreendente, após duas noites em que nenhum voluntário enfrentou mais privação de sono, novos exames detectaram a persistência do traçador nos encéfalos daqueles que não haviam dormido aquela única noite. Acúmulos resultantes da privação de sono não são depurados em noites subsequentes.

Não é a primeira vez que se notificaram consequências imediatas das restrições de sono. Um regime de apenas quatro horas de sono por poucas noites sucessivas elevam a glicose sanguínea para concentrações de pré-diabetes. Pessoas que dormiram menos de cinco horas nos dias de uma semana, produzem resposta imune inadequada após a vacinação contra a gripe. Homens jovens, após dormirem por apenas quatro horas por quatro dias consecutivos, têm queda na testosterona como fossem dez anos mais velhos. Dados hospitalares coletados em Michigan (EUA) revelaram aumento de 24% de infartos cardíacos no dia em que os relógios foram adiantados uma hora, em resposta à medida governamental semelhante ao nosso horário de verão.

Nosso ciclista deve rever sua relação com o sono. Melhores noites podem beneficiar sua saúde e atenção, com boa influência em seu desempenho esportivo, com potencial para reduzir suas quedas.

Referências:

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Foi publicado pela FOLHA DE SÃO PAULO e escrito pelo Dr. Luciano Magalhaes Melo, na data de 28/05/2021.